Natureza morta e cascas de camarão, TSF-Radio Noticias,Fernando Alves, 2022

TSF-Radio Noticias, Portugal

Natureza morta e cascas de camarão

Fernando Alves, 29 Setembro 2022

 

O museu de Belas Artes de Buenos Aires, o mais importante museu argentino, expõe por estes dias obras do artista neerlandês Rob Verf feitas com lixo urbano. O lixo enquanto natureza morta, eis o filão de Verf que, deste modo, nos confronta com a beleza paradoxal do lixo, a matéria prima das suas esculturas. Ele fala da sua própria criação artística a partir do lixo como uma reflexão sobre “a evanescência dos prazeres urbanos”. E lá temos, entre as mais consagradas obras da colecção do museu, as belas esculturas ou instalações produzidas com a alfurja da urbe. É um filão inesgotável. O sítio electrónico do governo argentino, onde colho a notícia, lembra que a cada dois segundos se produz uma tonelada de lixo no país. Ora aqui está uma ideia que talvez devesse merecer a atenção de Carlos Moedas, agora que o autarca acaba de anunciar uma “reforma estrutural” na recolha do lixo em Lisboa. Moedas já anunciou a intenção de negociar com as juntas de freguesia a solução para a recolha do lixo urbano na capital, nada o impede de desafiar os artistas plásticos a um contributo nesse, pelos vistos, ousado plano de intervenção. Já é sabido que o lixo é um negócio e dos bons. Uma resposta inovadora a velhos problemas de higiene urbana pode acolher, também, com proveito geral, o conceito de que o lixo é um luxo. O grande Luís Fernando Veríssimo contou numa crónica o caso de dois vizinhos, ela do 610, ele do 612, que se encontram na zona de serviço do prédio e que, pela primeira vez, se cumprimentam. E ali ficam conversando. “Tenho visto o seu lixo”, confessa a mulher. E, pelo lixo, sempre pouco, deduz que o interlocutor vive sozinho. Já reparou que ele usa muito comida de lata. Ao contrário, ele tem reparado que ela gosta de cozinhar, viu restos de cogumelos no lixo dela. E já reparou que ela recebe muita correspondência do Espírito Santo. Ela explica que a mãe vive lá. Ela observou restos de cigarros no lixo dele. Foi desde que o pai dele morreu, explica o vizinho que, entretanto, já deixou de fumar. Mas o vizinho reparou que, no lixo dela, têm surgido embalagens de tranquilizantes. Desamores. E há dias, – olho de lince, o dele – umas cascas de camarão no lixo dela. Ela faz notar que os descascou, mas ainda os não comeu. “Quem sabe a gente pode… jantar juntos?”. Qual trabalho, trabalho nenhum. Num instante se limpa a cozinha e se joga fora a estragação. E ele pergunta: “No seu lixo ou no meu?” Enquanto fazeis o vosso lixo matinal, possa esta história estimular a vossa criatividade. Se vos ocorrer alguma ideia brilhante, endereçai-a ao autarca que congemina a sua reforma estrutural.